quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Maternidade... hoje, porque sim..

     

 POEMA DE ME CHAMAR ANTÓNIO   
                 
 Hoje ao nascer do sol, de manhãzinha,
ouvi cantar um galo no quintal
quando eu tinha seis anos e fui passar as férias do Natal
com a minha madrinha.

Na cama improvisada no corredor
sabiamente fingia que dormia
muito embrulhado num cobertor,
enquanto numa luz melada e quase fria,
o mundo, sabiamente,
fingia que nascia.

E então apeteceu-me também nascer,
nascer por mim, por minha expressa vontade,
sem pai nem mãe,
sem preparação de amor,
sem beijos nem carícias de ninguém,
só, só e só por minha livre vontade.

Dobrado em círculo no ventre do meu cobertor,
enrugado como um feto à espera da liberdade
(viva a liberdade!)
cerrava e descerrava as pálpebras, sabiamente,
como se as não movesse,
como se não sentisse nem soubesse,
abrindo-as numa fenda dissimulada e estreita,
insensível às coisas quotidianas,
mas hábil para aquela alvorada puríssima e escorreita
que me inundava o sangue através das pestanas.
Fremiam-se-me as pálpebras sacudindo na luz um pó de borboletas,
um explodir de missangas furta-cores,
bacilos e vapores,
rendas brancas e pretas.

Cada vez mais feto, mais redondo, mais bicho-de-conta,
mais balão, mais planeta, bola pronta
a meter-se no forno,
mais eterno retorno,
mais sem fim nem princípio, sem ponta nem aresta,
excremento de escaravelho aberto numa fresta.

Foi então
que o tal galo cantou.
Looooooonge...
Muito looooooonge...
no quintal da vizinha,
lá para o fim do mundo mesmo ao lado da casa da minha madrinha.
Era uma voz redonda, débil, inexperiente,
bruxuleante como a chama
que está mesmo a apagar-se e esperta de repente
e novamente morre e de novo se inflama.
Uma voz sub-reptícia, anódina, irresponsável,
fugaz e insinuante,
um canto sem contornos, aéreo, imponderável.
Tudo isso e muito mais, mas principalmente distante.

Foi assim que a voz do galo na capoeira
do quintal da vizinha
que tinha plantado ao centro uma nespereira
mesmo junto da casa da minha madrinha,
penetrou no ventre macio do meu cobertor.
Era uma frente de onda, compacta e envolvente,
pura já na garganta e agora mais que pura,
filtrada
e destilada
nos poros ávidos da minha cobertura.
Chegou e fulminou o meu ser indigente,
exposto e carecido,
naquele gesto mole e distraído
do Deus omnipotente
da Capela Sistina
quando ergue a mão terrível e fulmina
o coração
de Adão.

E pronto. Eis-me nascido. Cheio de sede e fome.

António é o meu nome.

POEMA DE ANTÓNIO GEDEÃO
PINTURA DE GINO SEVERINI (1883-1966)