quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Notícias do Jaime (continuação) A Europa alemã. Novas paisagens de poder sob o signo da crise (Berlim: Suhrkamp Verlag)

Aqui vos deixo o link das 2 páginas anteriores , (13-14)
2. Os sucessos da União Europeia [15-18]
     55 anos após a assinatura dos Tratados de Roma, com os quais foi instituída a Comunidade Económica Europeia, a sua sucessora tenta, desesperadamente, provar a si própria e ao mundo que é capaz de passar no teste mais difícil da sua história. Ainda que, neste lugar, não se deva esquecer que muitos dos problemas não são por culpa da UE, mas sim uma consequência da crise financeira dos anos 2008 e seguintes – no decurso da qual gestores de bancos se converteram, de um dia para o outro, em fiéis do Estado, e os Governos abriram gigantescos guarda-chuvas de protecção –, a actual situação faz-nos afinal tomar consciência do erro central que está ligado ao nascimento do euro: num espaço económico de dimensão continental e com uma população de tamanho equivalente, surgiu um mercado comum [16] com moeda, em parte, comum. Mas ficou por dar o passo decisivo no sentido de uma verdadeira união económico-política – razão pela qual não foi possível coordenar, eficazmente, as economias dos Estados da Zona Euro. A concepção de um «nacionalismo recíproco», segundo a qual cada Estado tem o dever de controlar e resolver, ele próprio, os seus problemas financeiros, evitando consequências negativas para aos outros, poderá ser suficiente, em tempo de acalmia, mas em tempo de crise terá que falhar. Ao mesmo tempo, os acontecimentos do Verão de 2012 revelam, com toda a clareza, como todas as coisas estão relacionadas umas com as outras: se um Estado entrar em bancarrota, arrasta outros consigo.
     No meio desta agitação esquece-se, muitas vezes, que a UE, apesar de imperfeita, pode orgulhar-se de grandiosas conquistas: a União Europeia conseguiu o milagre de transformar inimigos figadais em vizinhos; os seus cidadãos gozam de liberdade política e de um nível de vida com o qual só podem sonhar outras populações de outras partes do mundo; a adesão à UE permitiu às anteriores ditaduras da Grécia, Portugal e Espanha converterem-se em democracias estáveis; com 27 Estados (depois da entrada da Croácia, prevista para o 1° de Julho de 2013, serão até 28) e mais de 500 milhões de habitantes, a UE é o maior mercado e bloco comercial do mundo; é possível que o modelo social e económico – a domesticação do capitalismo por parte do Estado-previdência – esteja a atravessar dificuldades, mas dispõe ainda de importantes trunfos e reservas de impulsos para reagir à crise financeira; seres humanos da África subsaariana ou do mundo árabe estão a pôr-se a caminho dos confins do continente da promissão, dispondo-se a correr enormes riscos; o desejo da Sérvia (e de outros Estados da antiga Jugoslávia) de aderir à União prova igualmente a duradoura atractividade da Europa organizada como lugar de liberdade e abastança. E agora tudo isto corre perigo de ficar em ruínas.
     O sucesso da União Europeia é, paradoxalmente e ao mesmo tempo, um motivo para a sua falta de auto-estima. Muitas das suas conquistas parecem tão evidentes às pessoas que, provavelmente, só se aperceberiam delas se, [17] um dia, deixassem de existir. Imaginemos que o controle do passaporte, nas fronteiras e nos aeroportos, voltaria a ser introduzido; que não haveria, em toda a parte, regulamentos fiáveis sobre produtos alimentares, nem liberdade de opinião e de imprensa (que a Hungria, hoje, está a desrespeitar, razão por que este país se sujeita a ser olhado com severidade); que não seria possível, sem ter de superar grandes obstáculos burocráticos, os estudantes trabalharem, nas férias, em Barcelona ou Avignon; que iria ser preciso, em viagens para Paris, Madrid ou Roma cambiar dinheiro, outra vez, e tomar nota dos câmbios. A «Europa pátria» tornou-se a nossa segunda natureza e precisamente isso poderia ser o motivo por que, tão levianamente, a damos por perdida.
     Seja como for, encontramo-nos, efectivamente, num momento histórico difícil, em que deveríamos voltar a ter diante dos olhos a pertinente definição do conceito de crise, elaborada por Antonio Gramsci. A crise, diz Gramsci, é o momento em que a antiga ordem mundial chega ao fim, e em que tem que ser conquistado, superando resistências e contradições, um mundo novo. Mas é precisamente esta fase de transição que é caracterizada por muitos erros e confusões. (10) E, hoje, é justamente a isto que estamos a assistir: uma cisão, um interregno, a simultaneidade de um descalabro e de um novo começo – cujo desfecho está em aberto. (11) Perplexidade, medo, impossibilidade de saber, frustração, desassossego, mas também o desejo ardente de mudança – tudo isto é típico de situações como estas, em que pode ser difícil destrinçar as coisas, nas quais as expectativas das pessoas já não se encaixam nos arranjos institucionais em que deveriam consumar-se. Todos estes sintomas, porém, podem ser já indícios da mudança iminente, como revelam os exemplos históricos da Reforma, da Revolução Francesa ou da implosão do Bloco de Leste. O descontentamento é sempre também o resultado de se estar atentando contra determinados direitos que foram sendo historicamente adquiridos. Nós, Europeus, vivemos em sociedades que declararam a liberdade e a igualdade como princípios fundamentais. Como sociólogo que tem vindo a observar estes fenómenos, não estou por isso nada surpreendido por as pessoas, na Grécia e em Espanha, se revoltarem contra um sistema que provoca desigualdades e injustiças de tão gritantes dimensões e que, escandalosamente, atira os custos, causados por um sistema financeiro descontrolado, para os ombros dos grupos mais frágeis. Uma (18) tal discrepância entre as expectativas e a realidade é sempre um motor de mobilização social. E, de facto, nos últimos meses e anos, temos vindo a ser testemunhas de como as pessoas, em Nova Iorque, Londres, Madrid ou Atenas, vão para a rua – um assunto a que irei voltar, outra vez, no fim deste trabalho.               
     
[Quarta, 31 de Outubro de 2012]
Tradução de Jaime Ferreira da Silva, professor universitário jubilado, Bochum, Alemanha

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